domingo, 19 de julho de 2009

Pelo sonho é que vamos

Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.
Chegamos? Não chegamos?
- Partimos. Vamos. Somos.

Pelo Sonho é que Vamos, Sebastião da Gama

E depois sentaste-te, com as pernas ainda um pouco a tremer e as imagens pouco nítidas. Havias acabado de o dizer a toda gente. "Basta a fé no que temos./Basta a esperança naquilo/que talvez não teremos". Pelo sonho é que vamos. Foi o que escolheste para te levantares, nesse dia, e proclamares perante o mundo inteiro. Éramos poucos, na verdade, mas foi como gritar para que todo o mundo pudesse ouvir. É irónico, não é? Acabou por ser um grito com a voz embargada, nesse dia que prometia ser solene... "Não vás", disseram-te, "ninguém estaria em condições e não precisas de fazê-lo, sobretudo hoje". Mas tu achavas que sim e avançaste com a determinação de quem jurou lembrar tudo o que vivemos.

Nessa manhã, o telefone tocou. A madrugada havia sido longa, prolongando o dia anterior pela noite que não dormiu; mas a manhã acabou por raiar, trazendo consigo apenas uns escassos momentos de descanso, justamente até àquele momento. Muito ao longe, pareceu-te que alguém tocava à porta, mas depois nada mais se ouviu e logo tudo se desvaneceu nessa mesma fugacidade com que chegara; julgavas que o tumulto era apenas parte de um sonho. E depois foi o telefone... Contudo, desta vez parecia mesmo real. Sempre prometeste que um dia irias aprender a desligar o telefone durante a noite, mas sempre adiaste esse dia para o dia seguinte. Talvez amanhã o faças. Hoje ainda não.

E atendeste, não conseguindo distinguir se te encontravas ainda na manhã de ontem ou já na véspera de amanhã. Uma voz de choro. Eram lágrimas, mas não palavras, que se ouviam ou que, na realidade, tentavam fazer-se ouvir, no meio de tudo. Ao longe, muito ruído. E foi tudo muito confuso, tão confuso que, ainda antes de perceberes uma palavra que fosse do que tentavam dizer-te, já tinhas compreendido tudo. Como se te tivessem apanhado de surpresa, mas já o soubesses. Acontecera. Mas como pudera deixar-nos sem sequer nos despedirmos? Não, não é possível. Este dia só deveria chegar muito tempo depois, quando, passado tudo o que devera ter-se passado, tivéssemos dito essa palavra que foi feita para não ser dita.

Adeus. Nunca tivemos essa oportunidade. Nunca no-la deram, também... E agora, como vais descobrir o que foi que ficou por dizer? Como pode ser que esse momento que todo o sentido nos dá seja esse mesmo que tudo nos leva também?

Mas não estavas na disposição de o permitir, nesse dia. Não! Não é verdade. Não pode ser verdade, porque sempre prometemos que este dia só chegaria depois de dizermos o quanto tudo foi importante, o quanto todos esses momentos que vivemos tiveram um sentido, o quanto todos esses dias nos trouxeram vida. E negaste-o, só tu sabes como o negaste com todas as forças do teu ser, porque só podia existir o que fosse lógico e racional. E isto não era, nem nunca o poderia ser, muito simplesmente. E assim o disseste a quem te quisesse ouvir, que não era verdade, que, por tudo aquilo que poderia fazer sentido, isto nunca poderia ser verdade.

Ah, como a juventude dos teus dias ainda te permitia nesse dia que o dissesses sem que não pensassem todos que era apenas um rasgo inocente daquela dor imaculada de alguém que está a aprender a senti-la pela primeira vez. Mas tu continuaste sempre a negá-lo, mesmo que já não o dissesses ou admitisses. E até que ponto não continuarás ainda a negá-lo? Quando esperas que o telefone toque para dizer que afinal era aquilo que tinham para te dizer e nunca chegaram a dizer-to, porque não tiveram tempo. Quando receias caminhar na plena escuridão de uma madrugada sombria e os reflexos brancos te gelam o âmago. Quando compreendes agora aquela ausência que tanto condenaste e que justificas agora como o gesto de altruísmo (que, ainda assim, continuas a contestar com todas as tuas forças) de quem tentava apenas poupar-te à dor de dizer aquela palavra que tudo leva consigo. Adeus. Ou até quando repetes para ti que, se calhar, até o que nunca poderá ter um sentido acaba por ter uma justificação em si. E assim, mesmo quando pareces aceitá-lo para ti, continuas a negá-lo.

De resto, juraste que estarias sempre à altura de tudo. Que levarias agora em ti o fulgor de - já não uma! -, mas duas vidas, o querer de duas vontades, o bater de dois corações. Juraste dar mais dias e mais vida a quem deixaram de os contar. E, no mais íntimo de ti, continuas a acreditar que algum dia lhos hás-de restituir, quanto te disserem que, efectivamente, nada daquilo aconteceu de verdade, porque só existe o que é real. E só pode ser real o que faz sentido.

Porque juraste levar em ti a vida que pertence a duas vidas, pela justiça que tem que haver.

Dizem que tudo se passou no dia de um santo. Pois que a todos nos abençoe!

"Não vás. Não precisas de o fazer, sobretudo hoje." Levantei-me. As pernas a tremer, a voz embargada. Levantei-me. Levantei-me e pude gritar. Levantei-me e pude chorar. Levantei-me e pude chorar-te, pelo menos uma vez (porque, de resto, recusei-me sempre a fazê-lo depois). Mas levantei-me.

Pelo sonho é que vamos.

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